Todos Pela Educação consultou capitais de todo país para saber como as redes organizam suas propostas curriculares
Mariana Mandelli
Colaborou Rita Trevisan
O que se ensina numa aula de matemática do 5º ano em Goiânia (GO) é o mesmo que os alunos de uma escola gaúcha aprendem? Os estudantes dos anos finais do Ensino Fundamental de Recife (PE) têm acesso aos mesmos conteúdos de ciências que as crianças paulistanas? Existe uma base comum para o que professores de Brasília (DF) e Salvador (BA) ensinam em sala de aula?
Responder a essas perguntas não é muito fácil. O Brasil não tem um currículo nacional para a Educação Básica – tema que é historicamente alvo de muitas polêmicas. O que existe hoje são as diretrizes curriculares nacionais para cada etapa, da Educação Infantil ao Ensino Médio. No entanto, os documentos são bastante amplos, o que motivou o Ministério da Educação (MEC) a detalhar de forma mais minuciosa o que os alunos devem aprender em cada ciclo. É o que se chama de direitos de aprendizagem, tema que está em debate no governo federal há cerca de um ano (leia mais aqui).
Para tentar elucidar um pouco o cenário, o Todos Pela Educação entrou em contato com secretarias de Educação de 12 capitais para saber que tipo de proposta curricular essas redes têm para o Ensino Fundamental. São elas: São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Belo Horizonte (MG), Fortaleza (CE), Recife (PE), Salvador (BA), Goiânia (GO), Brasília (DF), Campo Grande (MS), Manaus (AM), Porto Alegre (RS) e Florianópolis (SC).
A ideia era observar como as principais cidades do País se comportam em relação ao currículo. O resultado encontrado foi uma grande variedade de tipos, nomes, processos de construção, disciplinas e datas de implementação. Por exemplo: há casos de redes que afirmam ignorar os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), enquanto a maior parte diz se embasar plenamente neles.
“A variedade de currículos é muito desejável, mas deve haver um projeto de nação, de Estado. Toda nação que se constitui como república precisa ter uma língua e um projeto consensual de valores, que é de responsabilidade da escola”, define Fernando José de Almeida, filósofo, pedagogo e diretor de Educação da TV Cultura. “Um currículo não é apenas uma lista de conteúdos. Deve ter avaliação, intenção, atividades e também um conjunto de condições para que se crie o ambiente da aprendizagem – processo este que não é espontâneo”.
Variedade
Especialistas acreditam que essa diversidade de propostas curriculares existente no País só é positiva na medida em que se respeita uma base curricular nacional, disposta nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (para saber mais, clique aqui). “Como tudo, há um lado bom e um lado ruim nessa situação. O Brasil está organizado dessa forma: Estados e municípios são entes federados e, portanto, têm autonomia”, afirma Karina Rizek, do Instituto Natura, que já trabalhou na construção dos currículos de diversos municípios. “No entanto, existem muitos municípios sem a menor condição de construir um currículo por falta de recursos. Algumas dessas cidades acabam pegando as referências do MEC e colocam em prática na íntegra – às vezes de forma impositiva.”
Karina destaca que existem municípios vizinhos que apresentam referências muito distintas, o que prejudica a equidade da oferta na região. “Não se pode confundir autonomia com excesso de liberdade”, diz.
Maria do Pilar Lacerda, ex-secretária de Educação Básica do governo federal e diretora da Fundação SM, ressalta que uma base nacional fundamental dá sentido à nação. “Cada ente federado deve construir sua parte específica que respeite sua cultura e sua história. Mas não podemos perder de vista que o currículo existe para ordenar o processo de aprendizagem”, explica. “Para haver equidade entre as redes, não dá para abrir mão disso. O professor precisa saber o que ensinar e isso deve estar escrito.”
Legislação
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, afirma que é tarefa da União ”estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes” para todas as fases da Educação Básica. Esses documentos devem nortear os currículos e seus conteúdos mínimos, “de modo a assegurar formação básica comum”.
Ainda sobre o tema, a lei determina que os currículos do Ensino Fundamental e Médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, onde podem se sobressair as características regionais e locais da escola. Língua portuguesa, matemática, conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política do País, além de artes e educação física, são componentes obrigatórios pela LDB.
Para Pilar, as diretrizes nacionais em vigor podem ser consideradas a base comum, mas há a necessidade de se entrar num maior nível de detalhamento com o objetivo de assegurar as condições necessárias para que a criança aprenda. “Existem, no País, condições de acesso muito diferentes. Os direitos de aprendizagem, em discussão no MEC, pretendem garantir uma mudança nesse quadro.”
Nomenclatura
No levantamento realizado pelo Todos Pela Educação, foram encontrados diversos nomes para o que as redes municipais chamam de currículo: diretrizes (Fortaleza, Goiânia e Salvador); expectativas de aprendizagem (Rio de Janeiro); orientações curriculares (São Paulo); proposta pedagógica (Recife); proposição/proposta curricular (Belo Horizonte e Florianópolis) e referenciais curriculares (Porto Alegre e Campo Grande).
Manaus afirma que seu currículo é feito de acordo com o que determinam os PCNs. Já Brasília classifica sua proposta como um “um currículo feito a partir da realidade das escolas”.
Base
Apesar de datarem de 1996, a influência dos PCNs ainda é bastante forte nos currículos consultados. Os PCNs foram construídos e divulgados pelo MEC como referenciais divididos em disciplinas e por etapa de ensino da Educação Básica, de modo a orientar as escolas a construírem seus currículos. Eles não tinham caráter obrigatório, mas foram adotados por muitas redes públicas e particulares.
Das cidades consultadas, apenas Porto Alegre afirmou não fazer uso dos instrumentos curriculares nacionais (diretrizes curriculares nacionais e parâmetros curriculares) para compor sua proposta. Algumas capitais destacam que, apesar de fundamentarem seus currículos nos parâmetros, procuraram adaptar as propostas às necessidades específicas de suas redes.
“Partimos dos PCNs, buscando torná-los mais precisos e adequados a nossa realidade”, afirma a secretária municipal de Educação do Rio de Janeiro, Claudia Costin.
Conteúdos
Tereza Perez, coordenadora dos PCNS na década de 90 e hoje diretora da Comunidade Educativa Cedac, afirma que os currículos das capitais analisadas apresentam consonância nas propostas de matemática. “Todos apresentam os mesmos conteúdos, o que é interessante”, ressalta. Já em língua portuguesa, a diferenciação é mais acentuada, especialmente nos anos iniciais, segundo ela. “Muitas dessas propostas atualizaram os PCNs e podem servir de recurso para se criar uma base nacional comum”, ressalta.
Concepção e divisão
Há diferenças também na forma como cada capital tem de dividir os conteúdos de seus currículos: por ano/série, bimestre ou ciclo. São Paulo, por exemplo, definiu ano a ano as expectativas de aprendizagem. A divisão por áreas do conhecimento também difere. Manaus organiza sua proposta a partir das disciplinas: língua portuguesa, matemática, ciências, geografia, história, inglês, ensino religioso, artes e educação física.
Já Brasília vai lançar seu documento com três eixos de sustentação: cidadania, diversidade e sustentabilidade humana.
Os currículos consultados entraram em vigor entre 2002 e janeiro desse ano. Fortaleza e Porto Alegre, por exemplo, implementaram suas novas propostas nesse ano. Já Brasília está em processo de transição e o novo documento entra em vigor no ano que vem, segundo a secretaria a proposta em vigor era uma “versão experimental”.
As formas de conceber o documento são diversas. Em algumas, há a participação dos professores e profissionais das redes na discussão da proposta. “A participação dos docentes nesse processo de construção é muito importante, porque são eles quem colocarão em prática o que foi definido”, diz Tereza Perez.
O documento curricular de Manaus, por exemplo, foi concretizado com a participação de professores, pedagogos, assessores comunitários e pedagógicos das divisões regionais de Educação de diferentes zonas da cidade. Os professores tiveram uma participação especial na elaboração desse currículo, pois cada professor de cada disciplina pôde opinar e contribuir para construção desse documento.
Já Belo Horizonte, entre 2007 e 2008, investiu na colaboração dos professores por meio de uma rede de formação. O caso é semelhante ao de Rio Branco (AC) (leia mais aqui).
Em Porto Alegre o processo foi diferente. A gestão municipal solicitou as propostas pedagógicas de casa escola e os materiais foram analisados e discutidos. O currículo foi criado a partir da seleção do que foi considerado bom pela secretaria de Educação.
Avaliação
As capitais consultadas afirmam que utilizam as matrizes referencias das grandes avaliações nacionais em seus currículos, mas que eles não são compostos apenas por elas.
A relação entre currículo e avaliação, apesar de essencial, pode ser perigosa, alertam os educadores. Embasar a proposta curricular pelo que cobram as matrizes de referência das provas de larga escala, como Prova Brasil e o Saeb, é um erro e pode ser classificado como um caminho contrário do que deveria ser o processo educativo.
“É inegável a influência da avaliação hoje, porque ela é necessária. Mas se for executada dentro de uma política de professores mal formados, eles ficam reféns dela e o processo fica de cima para baixo”, afirma Regina Cunha, especialista em currículo escolar da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Cesar Callegari, secretário de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC), concorda. “É colocar a carroça na frente dos bois. O fato de as diretrizes serem muito amplas permite que isso ocorra – por isso é necessário o estabelecimento dos direitos de aprendizagem”, afirma.
Futuro
Apesar de já terem suas propostas curriculares, algumas redes afirmam que estudam mudanças – é o caso de Recife, Goiânia e de Brasília – a capital federal está em processo de construção de um novo currículo que deve ser implantado no início de 2013. Fortaleza e Porto Alegre ainda estão implementando suas propostas, portanto não visualizam mudanças em breve.
A revisão constante é imprescindível, afirmam especialistas. “Um currículo nunca está pronto: ele está em constante transformação”, explica Karina Rizek.
O Rio de Janeiro, por exemplo, tem uma sistemática de revisão anual do currículo, realizado com os professores e com o apoio de consultores de universidades federais. “A cada bimestre realizamos provas unificadas que nos permitem aferir se os alunos estão aprendendo, quais alunos precisam de reforço escolar, mas igualmente apoiam a análise da adequação do currículo e, consequentemente, de sua revisão”, afirma a secretária Claudia Costin.
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