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Corrupção do faz-de-conta

MACAU

Impacto do programa pedagógico do CCAC na moral infantil

O CCAC tem um sólido programa pedagógico de promoção em uso nas escolas primárias de Macau. As crianças aprendem o que é a corrupção e são estimuladas à denúncia com jogos de mesa e ao interpretarem papéis. A psicologia infantil analisa o método e tem dúvidas da sua eficácia. Na hora de brincar é mais provável que a escolha caia no senhor engravatado do que na menina honesta.

Sónia Nunes

No Dia Mundial da Criança o Comissariado Contra a Corrupção (CCAC) falou sobre denúncia no Paraíso da Integridade. O recreio para os incorruptíveis está instalado na delegação do organismo na zona Norte da cidade. Há uma árvore dos desejos onde os meninos e meninas podem pendurar um bilhete com votos de uma sociedade mais recta e andar na brincadeira com a Clarinha (a menina boa), o Sr. Indigno (o vilão engravatado), o Dentolas (o amigo do senhor trafulha) e o Urso Guilherme (o super-herói a quem as crianças podem contar segredos). São as personagens escolhidas pelo comissariado para promover a honestidade – as máscaras de cartão estão também presentes em 90 por cento das escolas de Macau, são usadas como material de apoio às aulas de educação cívica.

“Nada é vinculativo, tudo é opcional. Nós respeitamos a liberdade de ensino. Entendemos que há valores base que são importantes discutir na formação de uma pessoa, por isso oferecemos este material. É uma espécie de ensino complementar”, refere a chefe do Departamento de Relações Comunitárias do CCAC, Cristina Tang. A sala de actividades, esclarece, está integrada na delegação que organiza palestras anti-corrupção, tem salas insonorizadas que “oferecem garantias aos residentes que venham apresentar denúncias e permite-lhes falar tranquilamente e à vontade” e uma sala de identificação. Os espaços imitam os reais (os do comissariado) e foram pensados para receber visitas de menores. Há jogos de mesa, simulações de eleições, debates sobre a responsabilidade e o valor do dinheiro; um leque de painéis para que “os alunos do ensino primário se tornem cidadãos cumpridores da lei, com sentido de justiça e uma concepção correcta de valores”, sublinha Tang. A julgar pelos números o programa é aceite e procurado: a sucursal já recebeu 28 mil crianças desde que abriu portas, em 2004.

No estojo que é distribuído pelas escolas há um maço de papel de carta com um destinatário escrito, o Urso Guilherme – a mascote do CCAC, o ícone do projecto de educação e que as crianças pensam ser real. “Escrevem sobre o que acontece na escola, o que acham do futuro, o que querem fazer, onde passaram as férias... Há só uma coisa que é difícil para nós responder: pedem sempre prendas”, resume a chefe de gabinete, Ho Ioc San. A tarefa é penosa de gerir uma vez que “o nosso valor é precisamente que não se pode receber coisas sem se fazer nada por isso”, explica. Materialismos à parte, os dilemas éticos que chegam ao Guilherme são fáceis de resolver. “São inocentes, não pensam em coisas muito complicadas. Por exemplo: um aluno sabe que uma amiga disse uma mentira. Sabe que não é correcto, quer dizer ao professor, mas tem medo de perder uma amizade. Aconselhamo-lo a explicar à amiga que mentir é errado”, ilustra a técnica.
O Urso Guilherme é uma espécie de amigo secreto. “As crianças pensam que ele realmente existe. Não sabem que somos nós que estamos a dar o exemplo correcto para eles. Esta comunicação é muito importante. Eles escrevem, às vezes, coisas muito íntimas, como as dificuldades económicas da família. A nossa resposta é encorajá-los na vida, incentivá-los a estudar”, destaca Cristina Tang.

Atraente Sr. Indigno

O Urso Guilherme é uma das personagens modelares que anda em aventuras no Paraíso da Integridade e tem a cara chapada numa máscara de cartão. “É o defensor da integridade, o guardião da aldeia. A Clarinha é a amiga do Guilherme; o Dentolas ajuda o Sr. Indigno nas malandrices, a fazer actos ilícitos. É assim que as crianças brincam”, apresenta Luísa Costa Ferreira, assessora do gabinete do CCAC e coordenadora da Semana da Integridade na Escola Portuguesa. Os alunos do ensino primário podem vestir a pele destas quatro personagens. Não há um guião, é um jogo de improviso que se aproximada daquilo a que a psicologia chama interpretação de papéis. Porém, corre-se o risco de aqui a identificação ser feita com o mau da fita.

“Tem que se ter muito cuidado quando se escolhe estas personagens e ter uma sensibilidade para o contexto social e cultural da criança. Em Macau, onde há uma tendência forte para o materialismo, nunca escolheria a personagem que tem ar de rico, boa aparência, um fato janota e um papillon para ser o Sr. Indigno. As crianças ficam muitas vezes atraídas pela personagem negativa porque é apelativa, representa uma imagem alternativa e é mais fácil de seguir. Resultado: aspiram a ser como ela”, avalia a professora assistente do departamento de psicologia, Gertina Van Schalkwyk. Há dois aspectos que podem espoletar a (errada) modelação do comportamento: não há um argumento fixo que destaque qual é a moral da história e a personagem boa, a única que é humana, é uma menina. Será difícil escolher quem se quer representar.

“As crianças sentem-se mais atraídas por personagens do mesmo género e da mesma idade e que tenham um vida interessante, com aventuras. Há a rapariga. Quer isto dizer que são as meninas que falam de integridade? Há discrepâncias de género. Os rapazes não vão escolher a rapariga. Quanto muito escolhem o urso de peluche”, comenta a académica.

Por contraste à relação entre uma menina e um boneco está o Sr. Indigno. “Não é a personagem negativa na mente de uma criança. É a figura paternal, a que está no topo da sociedade, é querido e respeitado por todos”, frisa. E se o adolescente consegue distanciar-se da personagem e fazer teatro (como os alunos da EPM que criaram uma Cinderela Corrupta), a criança, pelo menos até aos dez anos, não aceita um hipotético eu. “São muito concretos. Se interpretam, são. Quando se critica a personagem, critica-se a criança. É muito difícil fazer este teatro sem que a criança sinta que é a boa ou a má”, observa.

Para o modelo funcionar, continua, seria preciso criar personagens masculinas como a Clarinha, que todos estivessem na mesma faixa etária e que fosse entregue aos professores um guia de actuação. Teria efeitos: “É uma boa ideia usar jogos com personagens com quem possam aprender princípios morais. A criança cognitivamente não tem habilidade para identificar uma emoção”, entende.

A fantasia está por norma relacionada com as experiências do dia-a-dia. “Não são temas pesados, são brincadeiras como alguém partir um vidro e fugir”, ilustra Cristina Tang. Para a técnica o esquema de interpretação de papéis é eficaz: “É a primeira vez que ouço falar em influências negativas”, assegura.

Peões da glória

Paraíso da Integridade é também o nome dum jogo de mesa integrado no material pedagógico do CCAC. Os peões são as quatro personagens que se deslocam no tabuleiro no habitual regime prémio/recompensa, conforme ditam os cartões e a sorte dos dados. Dizer que o professor se enganou ao dar um valor a mais no teste ou visitar um lar de idosos dá direito a dois avanços de casa. Quem deixar um amigo copiar fica com um movimento suspenso; quem levar sem autorização o dicionário recua três casas; quem usar o fundo da turma para gastos pessoais, falsificar a assinatura dos pais ou receber uma prenda para não dizer que o colega não fez os trabalhos de casa vai para a prisão. É um bom método para a criança perceber por que tem de respeitar a norma. Pode não saber o que é isso da corrupção mas descobre que para ficar no jogo tem de ser honesto, destaca Gertina Van Schalkwyk.

“Há uma boa consequência: este jogo reforça o comportamento positivo. Ao ganharem sentem-se realizados. Mas só podem ganhar se ficarem no jogo, ou seja, se seguirem as regras”, realça a docente. Aqui entramos noutro estádio do desenvolvimento moral. À volta do tabuleiro, a criança aprende o que é preciso fazer para ficar no grupo, pelo simples efeito de ver quem sai do jogo e fica a olhar. “Não há penalidades para quem quebre as regras mas é-se excluído do grupo. Imediatamente pelo processo de inclusão e exclusão, a criança aperceber-se do que significa cumprir as regras. Ao usar o seu nível de funções cognitivas e de necessidade de socialização ensina-se princípios básicos por demais abstractos como a honestidade”, observa a académica. Com a exclusão do colega que violou a norma estimula-se ainda a criança a estabelecer relações mais leais: “Passa do estado ‘somos amigos desde que sejas bom’ para ‘sou teu amigo mesmo que faças uma coisa má’. Avançam para uma amizade de compromisso”, esclarece.

Há, no entanto, dois reparos a assinalar: o facto de as crianças, segundo o CCAC, jogarem sem a vigilância do adulto e o sentimento de vitória. “Há um sentido de competitividade, mas a vida é competitiva. Claro que quero ganhar, quero que quero estar no paraíso e quero uma recompensa. Há um efeito negativo, mas não tem de ser reconhecido”, ressalva Van Schalkwyk. Porém, ninguém quer brincar com o campeão do jogo, aquele que ganha sempre. “Se o objectivo é ensinar princípios morais não vejo que as crianças possam jogar sozinhas, quanto mais não seja para alguém mudar os cartões. Por repetição apercebem-se muito rapidamente qual é a resposta que lhes permite avançar casas. E se ganharem sempre serão excluídos do grupo”, contrapõe.
O princípio da recompensa, é nesta fase, inocente. O primeiro nível do desenvolvimento moral assenta no castigo: não se contam mentiras porque não se quer pimenta na língua. Só a partir da adolescência é que se começa a sair do egoísmo ético e, mesmo na idade adulta, são poucos os que atingem a ética universal – os que resolvem o dilema de Heinz ao dizerem o farmacêutico tem obrigação de reconhecer o valor da vida e por isso não é preciso roubar o medicamento.

“Como chegamos a esse nível é através da recompensa. A criança não pode compreender que ‘faço isto porque é bom para a sociedade’”, frisa a especialista. Em teoria, a criança será capaz de transferir as regras do jogo para outros contextos. Levar o dicionário da escola sem autorização será igual a trazer um livro da biblioteca sem requisição. Não há, porém, estudos de impacto.
Depois de imitar a Clarinha ou conquistar o Paraíso da Integridade a criança que ainda esteja no nível recompensa/castigo deverá optar pela honestidade em vez da amizade. “Mas é uma coisa muito difícil de pedir, em particular numa sociedade que encoraja as pessoas a ter uma relação social”, vaticina a académica.

Denúncia e mágoa

É em jeito de brincadeira que os técnicos abordam “uma grande questão”, a denúncia. No mundo que não é a preto e branco, a postura do comissariado é fixa. “A nossa posição é muito clara, é encorajar as crianças a denunciarem. Tentamos explicar que é preciso ter coragem para fazer a denúncia porque se não o fizerem aparecem problemas. Temos um personagem que é dono de uma pastelaria e usa farinha adulterada: quem comer daqueles bolos fica doente. Se ela denunciar vai ajudar muitas pessoas”, exemplifica Cristina Tang.

Quando o caso do pasteleiro é apresentado (é uma das personagens da BD “Galeria da Integridade”) as crianças, destaca, entendem que devem denunciar. Darão a mesma resposta a todos os problemas. “Sabem muito bem distinguir o correcto e o incorrecto, são muito directas. Por norma, não escolhem não denunciar. Quando ficam adultos é que a coisa piora”, entende. É um raciocínio linear?

“O cozinheiro até é simpático, mas eu não o conheço. Se opto por denunciar tem que ver com a relação que eu tenho com o infractor”, analisa Van Schalkwyk. Ou seja, uma queixa dum acto de corrupção será apresentada se não houver qualquer relação emocional com o transgressor.

“Denunciar só vai funcionar com uma pessoa distante. Se for alguém que me é próximo, sou também eu que saio magoado com a denúncia”, enfatiza a docente – é a partir dos cinco, seis anos que nos apercebemos que não somos bichos solitários, não queremos perder amigos.

Numa das edições chinesas da “Galeria da Integridade” é contada a história de uma menina que se apercebe que a empregada doméstica, contratada pela mãe, não tem autorização de residência. O que ela faz? “Não somos extremistas: não dizemos para denunciar o pai ou a mãe. A criança vai falar com a mãe e explicar-lhe que a empregada não está legalizada. Não vai denunciar!”, destaca Tang. E se o fizesse?

“Não há uma resposta taxativa. Nesta idade, eu preciso de amigos e isto é certo e errado de acordo com uma pessoa que eu nem conheço. A imagem do CCAC pode ser negativa. As hipóteses de denunciar são muito mais baixas quando na família há um julgamento moral sobre as autoridades”, avalia Van Schalkwyk. Os princípios morais que norteiam a personalidade infantil partem do núcleo familiar. E no sistema oligogárquico de Macau, sublinha, é o pai que disciplina o agregado.

“O Governo, que é o pai acima do pai... Ao Man Long era estimado por todos. Estou a especular, mas ele não ensinou aos filhos que estaria a fazer uma coisa errada; para eles, o pai estava a ganhar dinheiro para terem uma vida melhor. Muita gente dirá agora que sabia que ele era corrupto. Fecharam os olhos porque não o queriam pôr em mais lençóis e dificilmente admitiriam que receberam presentes dele. Uma vez mais, evitou-se o castigo”, extrapola. Com o programa do CCAC, conclui, as crianças assim ficam mais conscientes do que é a corrupção mas na esfera pessoal serão benevolentes: “Poderá evitar coisas como o plágio e a mentira. Mas é uma enorme esperança acreditar que eles denunciem os amigos”.

Hoje Macau

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