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Lacerda e suas professoras
Mauricio D. Perez
Doutor em História
A antiga Lei de Diretrizes e Bases da Educação, aprovada em 1960, arrastou-se na Câmara de Deputados ao longo de 14 anos, em meio a infindáveis debates. A questão mais polêmica girava na relação escola pública e particular. De um lado havia figuras de proa como Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e Caio Prado Júnior. Do outro, encontrava-se o que era considerado como o inimigo do ensino público, Carlos Lacerda.
Eleito governador no fim desse mesmo ano, Lacerda escolheu como secretário de educação Flexa Ribeiro, dono de uma escola particular. As expectativas não poderiam ser piores, num momento em que se registrava um déficit de 100 mil vagas no ensino primário da cidade. Isto é, para alfabetizar uma criança, o pobre que não tinha pistolão, tinha que se animar a enfrentar uma fila de uma semana e contar com a sorte.
No entanto, as previsões não se confirmaram. Após um ano, o déficit de vagas no ensino público caiu para 20 mil e no ano seguinte, em 1962, foi zerado. Primeiramente otimizou-se o tempo e espaço disponível nas escolas existentes, que passaram a funcionar 6 dias na semana em regime de três turnos. Depois, à medida que as novas foram construídas, foi possível voltar a normalidade a partir de março de 1966. Nesse período foram inauguradas 200 escolas, uma a cada nove dias. Estabeleceu-se um padrão arquitetônico que possibilitou redução significativa do custo de construção e de manutenção das escolas, que tradicionalmente não dispõem de verba adequada para reparos, ocasionando a degradação do ambiente escolar. Por isso as tubulações foram colocadas por fora da estrutura, as janelas feitas sem vidro e com persiana de madeira, o pé direito foi elevado para aumentar a ventilação e a fachada recebeu tijolinhos vermelhos que dispensavam pintura. Onde o terreno era caro, como na Zona Sul, a escola era construída numa parte de praça pública. Eliminando a demanda reprimida em cada local da cidade, diminuía também o espaço da indústria da clientela e do pistolão que são filhos diretos da ''falta de vaga''.
Mas o trabalho mais significativo foi feito junto ao magistério. Em primeiro, aumentando o salário das professoras - tornou-se o mais bem pago na federação - e indexando-o ao salário-mínimo para evitar futuras perdas. Em segundo, é preciso compreender que vivia-se uma época em que a brasileira de classe média ou alta tinha como profissão básica ser professora. Esposas de diplomatas, desembargadores e outros profissionais de relevo comumente ocupavam os melhores lugares, relegando para as demais os estabelecimentos mais afastados. Isso era tão comum que a principal ocupação dos secretários de educação no Distrito Federal sempre fora atender esses pedidos. Ao se instituir um plano de carreira, estabeleceu-se um sistema de pontuação para determinar a lotação das professoras. A recém-ingressada partia de um número mínimo e ia dar aula na periferia. Com o passar dos anos, acumulavam-se pontos que permitiam que escolhesse um lugar mais próximo. Intransigente em abrir exceções à regra, a secretaria de educação conseguiu um trunfo valioso: professoras qualificadas, motivadas e engajadas. Isso explica em boa parte a fama da qualidade do ensino público carioca nesse período. O governo seguinte, com Negrão de Lima, deu continuidade ao trabalho e ao plano de expansão de vagas no ensino médio, o que permitiu que em dez anos houvesse uma transformação do ensino público fundamental na Guanabara.
Como sabemos, desde então muito se perdeu. Novos problemas surgiram, tanto da parte dos alunos, que não dispõe de um ambiente familiar propício ao estudo; da parte das professoras, mal formadas, mal remuneradas, sem autoridade e sem prestígio dentro e fora da sala de aula; da parte da escola, cujos recursos não chegam às vezes para atender o básico. Novos desafios que reclamam um plano de ação. O problema é que estamos quase convencidos das desculpas que nos dão: que as soluções eficazes só vingarão gradualmente. Darão resultados algum dia, num futuro longínquo, se tudo der certo. Não é verdade. A história mostra que pode ser diferente. E nossas crianças precisam ser alfabetizadas, funcionalmente, efetivamente, agora. Quem vê de perto o estado atual do ensino primário público se assusta, porque é uma geração inteira que está perdendo a chance da sua vida.
Lacerda e suas professoras
Mauricio D. Perez
Doutor em História
A antiga Lei de Diretrizes e Bases da Educação, aprovada em 1960, arrastou-se na Câmara de Deputados ao longo de 14 anos, em meio a infindáveis debates. A questão mais polêmica girava na relação escola pública e particular. De um lado havia figuras de proa como Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e Caio Prado Júnior. Do outro, encontrava-se o que era considerado como o inimigo do ensino público, Carlos Lacerda.
Eleito governador no fim desse mesmo ano, Lacerda escolheu como secretário de educação Flexa Ribeiro, dono de uma escola particular. As expectativas não poderiam ser piores, num momento em que se registrava um déficit de 100 mil vagas no ensino primário da cidade. Isto é, para alfabetizar uma criança, o pobre que não tinha pistolão, tinha que se animar a enfrentar uma fila de uma semana e contar com a sorte.
No entanto, as previsões não se confirmaram. Após um ano, o déficit de vagas no ensino público caiu para 20 mil e no ano seguinte, em 1962, foi zerado. Primeiramente otimizou-se o tempo e espaço disponível nas escolas existentes, que passaram a funcionar 6 dias na semana em regime de três turnos. Depois, à medida que as novas foram construídas, foi possível voltar a normalidade a partir de março de 1966. Nesse período foram inauguradas 200 escolas, uma a cada nove dias. Estabeleceu-se um padrão arquitetônico que possibilitou redução significativa do custo de construção e de manutenção das escolas, que tradicionalmente não dispõem de verba adequada para reparos, ocasionando a degradação do ambiente escolar. Por isso as tubulações foram colocadas por fora da estrutura, as janelas feitas sem vidro e com persiana de madeira, o pé direito foi elevado para aumentar a ventilação e a fachada recebeu tijolinhos vermelhos que dispensavam pintura. Onde o terreno era caro, como na Zona Sul, a escola era construída numa parte de praça pública. Eliminando a demanda reprimida em cada local da cidade, diminuía também o espaço da indústria da clientela e do pistolão que são filhos diretos da ''falta de vaga''.
Mas o trabalho mais significativo foi feito junto ao magistério. Em primeiro, aumentando o salário das professoras - tornou-se o mais bem pago na federação - e indexando-o ao salário-mínimo para evitar futuras perdas. Em segundo, é preciso compreender que vivia-se uma época em que a brasileira de classe média ou alta tinha como profissão básica ser professora. Esposas de diplomatas, desembargadores e outros profissionais de relevo comumente ocupavam os melhores lugares, relegando para as demais os estabelecimentos mais afastados. Isso era tão comum que a principal ocupação dos secretários de educação no Distrito Federal sempre fora atender esses pedidos. Ao se instituir um plano de carreira, estabeleceu-se um sistema de pontuação para determinar a lotação das professoras. A recém-ingressada partia de um número mínimo e ia dar aula na periferia. Com o passar dos anos, acumulavam-se pontos que permitiam que escolhesse um lugar mais próximo. Intransigente em abrir exceções à regra, a secretaria de educação conseguiu um trunfo valioso: professoras qualificadas, motivadas e engajadas. Isso explica em boa parte a fama da qualidade do ensino público carioca nesse período. O governo seguinte, com Negrão de Lima, deu continuidade ao trabalho e ao plano de expansão de vagas no ensino médio, o que permitiu que em dez anos houvesse uma transformação do ensino público fundamental na Guanabara.
Como sabemos, desde então muito se perdeu. Novos problemas surgiram, tanto da parte dos alunos, que não dispõe de um ambiente familiar propício ao estudo; da parte das professoras, mal formadas, mal remuneradas, sem autoridade e sem prestígio dentro e fora da sala de aula; da parte da escola, cujos recursos não chegam às vezes para atender o básico. Novos desafios que reclamam um plano de ação. O problema é que estamos quase convencidos das desculpas que nos dão: que as soluções eficazes só vingarão gradualmente. Darão resultados algum dia, num futuro longínquo, se tudo der certo. Não é verdade. A história mostra que pode ser diferente. E nossas crianças precisam ser alfabetizadas, funcionalmente, efetivamente, agora. Quem vê de perto o estado atual do ensino primário público se assusta, porque é uma geração inteira que está perdendo a chance da sua vida.
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