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A família e a construção do bem
Rodrigo da Cunha Pereira
Bala perdida, tráfico de drogas, gravidez na adolescência, crianças de rua e na rua etc. constituem apenas um sintoma da desestruturação da família. Não há como negar que a família foi, é e continuará sendo a célula-mater da sociedade e do Estado. Mas o melancólico é a incompreensão do Estado em não ver esses sinais de desestruturação que aparecem por meio da família. Não se trata de uma posição moralista, um saudosismo ou nostalgia em relação à família tradicional. Ao contrário, é preciso compreender que a família mudou, pois mudaram também as relações econômicas e sociais. Muito mais que os modos de produção, mudaram também os modos de comunicação. O ciberespaço, o amor on line e off line, os modos de reprodução e a liberdade sexual fizeram uma transformação na realidade das famílias e das relações interpessoais. O feminismo concedeu à mulher um lugar de sujeito de Direito e com isso ela pôde apropriar-se do próprio desejo. O elemento econômico já não ocupa mais a sua cena central e o amor e o afeto é que dão o tom desta nova realidade: famílias monoparentais, recompostas, nucleares, binucleares, homoafetivas, geradas por processos artificiais, uniões estáveis, casamentos etc.
Seja lá como for a sua constituição, a família não está em desordem. Este processo histórico de transformação, no qual estamos inseridos, às vezes leva-nos ao raciocínio de uma “degradação”. É que “a mente apavora o que ainda não mesmo velho”, como cantou Caetano Veloso. Muitos querem “salvar” a família e até se socorrem do Legislativo apresentando projetos de lei para proibir a concupiscência e a depravação. Exemplo disto são os projetos de lei apresentados recentemente à Câmara Municipal do Rio de Janeiro (RJ) para curar a homossexualidade e à Câmara Municipal de Porto Velho (RO), já aprovado em primeiro turno, que declara Jesus Cristo como único senhor e salvador da cidade. Neste projeto de lei, o vereador garante que a cidade “renuncia toda a obra realizada no passado de prostituição, impureza, lascívia, ruínas, homicídios, prostituição infantil (...)”. Estes dois exemplos, caricatos ou, na melhor das hipóteses, ridículos, revelam uma perigosa onda moralista. Em outras palavras, tenta-se engessar o desejo quando as pessoas não dão conta do livre exercício da sua liberdade.
Ademais, ressalte-se no caso o foco equivocado, que produz derivações que penalizam comunidades e grupos. Ao confundir público e privado, mistura que historicamente penalizou o Estado brasileiro, o fundamentalismo religioso, e se avocam direitos e procedimentos que invadem impunemente o espaço público, que é de todos.
O século 20, marcado pelas duas guerras mundiais, pela revolução das mulheres e pela descoberta do inconsciente, tão generosamente rico em inovações e conquistas, amadureceu-nos o suficiente para compreender com a devida profundidade uma palavra que a banalização não desprestigiou: o amor. Entramos no século 21 de posse de uma fortuna intangível: a compreensão de que a família deve conter, para além da harmonia de que falam os textos, a dignidade humana, condição que deve preponderar sobre as relações econômicas.
Kant, o filósofo da dignidade, não imaginava que suas idéias originais de dignidade ocupariam o centro e seriam o veio condutor das constituições democráticas do final do século 20 e as do século 16.
Dignidade tornou-se, então, a palavra-chave para a compreensão das novas relações de família. Se se pensar a família pelo viés do afeto e da dignidade certamente teríamos núcleos familiares mais consistentes e livres. O reconhecimento e a fruição de bons valores inevitavelmente remetem à construção de ambientes virtuosos, que inevitavelmente produzirão frutos propícios à boa colheita. A dignidade humana preside esses valores.
Certamente não teríamos tantos fernandinhos beira-mar. A usina cessaria pela falta de matéria-prima. E aí, é igualmente inevitável, foca-se o Estado. Se o Estado voltasse seu olhar para dar dignidade à família brasileira não teríamos tantas crianças abandonadas, balas-perdidas etc. Esta problemática da família e sua organização jurídica é o centro da discussão do Quinto Congresso Brasileiro de Direito de Família que acontecerá em Belo Horizonte de 25 a 29 de outubro próximos.
Rodrigo da Cunha Pereira é presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família.
A família e a construção do bem
Rodrigo da Cunha Pereira
Bala perdida, tráfico de drogas, gravidez na adolescência, crianças de rua e na rua etc. constituem apenas um sintoma da desestruturação da família. Não há como negar que a família foi, é e continuará sendo a célula-mater da sociedade e do Estado. Mas o melancólico é a incompreensão do Estado em não ver esses sinais de desestruturação que aparecem por meio da família. Não se trata de uma posição moralista, um saudosismo ou nostalgia em relação à família tradicional. Ao contrário, é preciso compreender que a família mudou, pois mudaram também as relações econômicas e sociais. Muito mais que os modos de produção, mudaram também os modos de comunicação. O ciberespaço, o amor on line e off line, os modos de reprodução e a liberdade sexual fizeram uma transformação na realidade das famílias e das relações interpessoais. O feminismo concedeu à mulher um lugar de sujeito de Direito e com isso ela pôde apropriar-se do próprio desejo. O elemento econômico já não ocupa mais a sua cena central e o amor e o afeto é que dão o tom desta nova realidade: famílias monoparentais, recompostas, nucleares, binucleares, homoafetivas, geradas por processos artificiais, uniões estáveis, casamentos etc.
Seja lá como for a sua constituição, a família não está em desordem. Este processo histórico de transformação, no qual estamos inseridos, às vezes leva-nos ao raciocínio de uma “degradação”. É que “a mente apavora o que ainda não mesmo velho”, como cantou Caetano Veloso. Muitos querem “salvar” a família e até se socorrem do Legislativo apresentando projetos de lei para proibir a concupiscência e a depravação. Exemplo disto são os projetos de lei apresentados recentemente à Câmara Municipal do Rio de Janeiro (RJ) para curar a homossexualidade e à Câmara Municipal de Porto Velho (RO), já aprovado em primeiro turno, que declara Jesus Cristo como único senhor e salvador da cidade. Neste projeto de lei, o vereador garante que a cidade “renuncia toda a obra realizada no passado de prostituição, impureza, lascívia, ruínas, homicídios, prostituição infantil (...)”. Estes dois exemplos, caricatos ou, na melhor das hipóteses, ridículos, revelam uma perigosa onda moralista. Em outras palavras, tenta-se engessar o desejo quando as pessoas não dão conta do livre exercício da sua liberdade.
Ademais, ressalte-se no caso o foco equivocado, que produz derivações que penalizam comunidades e grupos. Ao confundir público e privado, mistura que historicamente penalizou o Estado brasileiro, o fundamentalismo religioso, e se avocam direitos e procedimentos que invadem impunemente o espaço público, que é de todos.
O século 20, marcado pelas duas guerras mundiais, pela revolução das mulheres e pela descoberta do inconsciente, tão generosamente rico em inovações e conquistas, amadureceu-nos o suficiente para compreender com a devida profundidade uma palavra que a banalização não desprestigiou: o amor. Entramos no século 21 de posse de uma fortuna intangível: a compreensão de que a família deve conter, para além da harmonia de que falam os textos, a dignidade humana, condição que deve preponderar sobre as relações econômicas.
Kant, o filósofo da dignidade, não imaginava que suas idéias originais de dignidade ocupariam o centro e seriam o veio condutor das constituições democráticas do final do século 20 e as do século 16.
Dignidade tornou-se, então, a palavra-chave para a compreensão das novas relações de família. Se se pensar a família pelo viés do afeto e da dignidade certamente teríamos núcleos familiares mais consistentes e livres. O reconhecimento e a fruição de bons valores inevitavelmente remetem à construção de ambientes virtuosos, que inevitavelmente produzirão frutos propícios à boa colheita. A dignidade humana preside esses valores.
Certamente não teríamos tantos fernandinhos beira-mar. A usina cessaria pela falta de matéria-prima. E aí, é igualmente inevitável, foca-se o Estado. Se o Estado voltasse seu olhar para dar dignidade à família brasileira não teríamos tantas crianças abandonadas, balas-perdidas etc. Esta problemática da família e sua organização jurídica é o centro da discussão do Quinto Congresso Brasileiro de Direito de Família que acontecerá em Belo Horizonte de 25 a 29 de outubro próximos.
Rodrigo da Cunha Pereira é presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família.
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