Pular para o conteúdo principal

Confusão na educação básica

Paulo Renato Souza, O Estado de S. Paulo (23/10/05)

Dois anos, nove meses e 18 dias depois de iniciado o atual governo, começou finalmente a tramitar a PEC que cria o Fundo de Desenvolvimento do Ensino Básico (Fundeb), com a instalação da Comissão Especial na Câmara dos Deputados. Esse atraso só revela a baixa prioridade outorgada ao ensino básico por um governo que defendia essa proposta desde a campanha eleitoral e deveria tê-la apresentado ainda no seu primeiro ano de gestão. Mas antes tarde do que nunca! O seu mérito está em tratar do tema do conjunto do financiamento ao ensino básico; seu grande defeito é misturar níveis educacionais e instâncias federativas, acrescentando mais confusão ao já pouco transparente regime fiscal do federalismo brasileiro.

No nosso país a educação básica é constituída por três níveis de ensino: infantil, fundamental e médio. Nossa Constituição define claramente que a primeira é responsabilidade exclusiva dos municípios e a última, dos Estados, sendo a do ensino fundamental compartilhada entre as duas instâncias de governo. Em 1995, no primeiro ano do governo do presidente Fernando Henrique, enviamos ao Congresso a PEC que criou o Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef), aprovada em setembro do ano seguinte como a Emenda Constitucional nº 14.

Essencialmente, o Fundef promove uma redistribuição de 15% da arrecadação dos Estados e municípios de acordo com o número de alunos nas escolas estaduais e municipais dentro de cada Estado da Federação e garante, com recursos federais, um gasto mínimo nacional por aluno por ano. Foi graças ao Fundef que nosso país foi capaz de fazer uma revolução sem precedentes históricos ao passar de 87% para 97% das crianças de 7 a 14 anos na escola em cerca de cinco anos. O mecanismo de estímulo era simples e transparente: vincularam-se recursos a esse nível de ensino e ao número de alunos freqüentando a escola nas redes responsáveis (estaduais e municipais): quanto mais alunos tivessem, mais recursos os Estados ou municípios passaram a ter.

O Fundeb pretende copiar os mesmos mecanismos que deram certo: vincular agora 20% dos recursos fiscais de Estados e municípios ao ensino básico, redistribuir esses recursos de acordo com o número de alunos nas redes estaduais e municipais dos três níveis da educação básica e garantir um valor mínimo nacional por aluno para cada nível de ensino. O problema da proposta não é o mecanismo similar ao do Fundef, que já deu certo; o problema é a mistura dos três níveis da educação básica num só fundo comum. Se o Fundeb for aprovado como proposto, haverá recursos municipais que deveriam ser dedicados à educação infantil sendo transferidos para o ensino médio estadual e recursos do ensino médio estadual que passarão a ser canalizados para o ensino infantil em alguns municípios do Estado.

A situação seria menos grave se esses movimentos de recursos entre as duas instâncias federativas pudessem ser previstos com certa precisão. Essa situação de previsibilidade ocorreria se nos três níveis de ensino já tivéssemos alcançado a universalização do acesso para todas as crianças e os jovens em todos os municípios e Estados brasileiros. Certamente esse não é o caso, pois isso só se verifica até agora para o ensino fundamental. Em muitos municípios a proporção de crianças na educação infantil é ainda muito baixa, o mesmo ocorrendo com a taxa de escolarização de jovens no ensino médio em determinados Estados. Assim sendo, dependendo do ritmo de avanço nas matrículas da educação infantil ou do ensino médio, os recursos poderão mover-se rapidamente entre Estados e municípios e entre os vários níveis de ensino da educação básica. O problema não é apenas a transferência de recursos entre a educação infantil e o ensino médio. Corre-se também o risco - bastante provável - de virem a diminuir os recursos que hoje já são canalizados para o ensino fundamental por força do Fundef. Em outras palavras, pode-se destruir o que foi arduamente conquistado nos últimos dez anos: a valorização do ensino fundamental, único nível obrigatório pela Constituição brasileira.

Além disso, a PEC causa problemas à educação infantil ao limitar seu benefício apenas à pré-escola. É, sem dúvida, um retrocesso em relação à situação atual, em que, segundo a LDB, os 25% que os municípios devem aplicar em educação devem ser destinados à educação infantil ou ao ensino fundamental. Como o Fundef vincula 15% a este último, hoje estão reservados 10% dos recursos municipais apenas para a educação infantil. A proposta do governo fala na prática em 5% para a educação pré-escolar, silenciando sobre o tema da educação de 0 a 3 anos.

Desde que deixei o ministério venho insistindo na necessidade urgente de definirmos um esquema de financiamento para o conjunto do ensino básico semelhante ao do Fundef. Hoje, esse tema passa a ser ainda mais premente, pois o Fundef é um mecanismo transitório, que deixará de existir a partir de 31 de dezembro do próximo ano. Com minha experiência de oito anos como ministro da Educação - o mais "longevo" de nossa História democrática - e independentemente de quaisquer interesses políticos ou partidários, posso assegurar que a única solução possível será criar três fundos: um para a educação infantil, envolvendo relações entre a União e os municípios; outro para o ensino fundamental, estendendo no tempo o atual Fundef; e um terceiro para o ensino médio, envolvendo apenas a União e os Estados. Se, por razões menores de paternidade, desejarem manter a denominação geral Fundeb, que o façam, mas, em nome do futuro da educação brasileira, sugiro que separem claramente os recursos e as responsabilidades entre os três níveis da educação básica e as três esferas federativas.

Paulo Renato Souza, economista, foi ministro da Educação no governo Fernando Henrique Cardoso, gerente de Operações do BID, reitor da Unicamp e secretário de Educação de São Paulo no governo Montoro.
E-mail: paulo.renato@isd.org.br

Comentários

Postagens mais visitadas na última semana

ENCCEJA 2023

Aplicação do exame será no dia 27 de agosto. De 3 a 14 de abril, os participantes poderão justificar ausência no exame de 2022. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) publicou, nesta quarta-feira, 15 de março, no Diário Oficial da União (DOU), o Edital n.º 19, de 13 de março de 2023, que dispõe sobre as diretrizes, os procedimentos e os prazos do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) 2023. A aplicação para o ensino fundamental e médio será no dia 27 de agosto e ocorrerá em todos os estados e no Distrito Federal.

Política de Privacidade

"Política de Privacidade" "Este blog pode utilizar cookies e/ou web beacons quando um usuário tem acesso às páginas. Os cookies que podem ser utilizados associam-se (se for o caso) unicamente com o navegador de um determinado computador. Os cookies que são utilizados neste blog podem ser instalados pelo mesmo, os quais são originados dos distintos servidores operados por este, ou a partir dos servidores de terceiros que prestam serviços e instalam cookies e/ou web beacons (por exemplo, os cookies que são empregados para prover serviços de publicidade ou certos conteúdos através dos quais o usuário visualiza a publicidade ou conteúdos em tempo pré determinados). O usuário poderá pesquisar o disco rígido de seu computador conforme instruções do próprio navegador. O Google, como fornecedor de terceiros, utiliza cookies para exibir anúncios neste site. Com o cookie DART, o Google pode exibir anúncios para seus usuários com base nas visitas feit

18ª OBMEP

18ª Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas - OBMEP Acompanhe através da página OBMEP 06/07/2023 - Confira os gabaritos da 1ª fase 01/02/2023 - Inscrições até 17/03/2023 Promovida pelo Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA) , a maior competição científica do país reúne todos os anos mais de 18 milhões de estudantes do 6º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio. Instituições públicas municipais, estaduais, federais e privadas podem participar. As inscrições são feitas exclusivamente pelas escolas e o prazo vai até 17 de março. A novidade deste ano é o aumento no número de premiações. Além de 8,4 mil medalhas de ouro, prata ou bronze oferecidas em todo o país, serão distribuídas pelo menos outras 20,5 mil medalhas a nível regional. A olimpíada vai conceder ainda o dobro de medalhas para escolas privadas, com o objetivo de incentivar a participação de mais instituições. A nível nacional, serão distribuídas 650 medalhas de ouro, 1.950 de prata e 5.850 b

ENCCEJA Nacional 2018 - Gabaritos

Gabarito do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos - ENCCEJA 2018 Clique aqui para conferir os gabaritos       Gabarito oficial do Encceja 2018 já está disponível no Portal do Inep O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) disponibilizou o gabarito oficial do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) 2018 na tarde desta sexta-feira, 17 de agosto, como previsto em edital. O Encceja Nacional foi aplicado em 5 de agosto em todo o país. Os documentos podem ser acessados no Portal do Inep. Para o Ensino Fundamental estão disponíveis os gabaritos das provas de Ciências Naturais; História e Geografia; Língua Portuguesa, Língua Estrangeira Moderna, Artes, Educação Física e Redação; e Matemática. Para o Ensino Médio os gabaritos são de Ciências da Natureza e suas Tecnologias (Química, Física e Biologia); Ciências Humanas e suas Tecnologias (História, Geografia, Filosofia e S

Lista de blogs relacionados